Profissões tradicionais em movimento: médicos, advogados e outros em modo nômade digital

Por: Bruna Bozano

Comprar uma passagem aérea para Punta Cana e atender um cliente por vídeo chamada enquanto contempla o paraíso diante dos seus olhos pode parecer uma fantasia ou algo completamente inalcançável, mas cada dia mais pessoas estão vivendo essa realidade. 

Com um laptop e boa conexão, profissionais de saúde, advogados e educadores podem atender clientes de qualquer lugar do mundo. 

O nomadismo digital – a possibilidade de trabalhar remotamente sem escritório fixo – cresce globalmente, com estimativas de até 80 milhões de pessoas nesse estilo de vida em 2025. 

No Brasil, a tendência acelerou com a pandemia de Covid-19 e a regulamentação do trabalho remoto em várias áreas. 

Segundo pesquisa da UFPR, 28,3% dos nômades digitais brasileiros atuam na área de comunicação (25% em marketing). Embora profissões como publicidade e TI dominem esse universo, médicos, advogados, arquitetos, engenheiros, veterinários, designers e professores também adaptam suas carreiras ao modelo remoto. 

A seguir, analisamos como cada uma dessas carreiras pode manter a atividade “sem presença física” e damos dicas práticas para seguir esse caminho.

Advogados e trabalho jurídico remoto

No Direito, o home office já virou realidade corrente. Muitos advogados – sobretudo autônomos e consultores – adotaram o nomadismo digital aproveitando audiências eletrônicas e peticionamentos online. 

Com sistemas de processo eletrônico (eproc, PJe, SAJ) e videoconferências, audiências do Judiciário acontecem a distância, assim como reuniões e atendimentos a clientes. 

De fato, o período de isolamento mostrou que os advogados podem representar clientes de qualquer lugar: um advogado trabalhista online, por exemplo, consegue participar de audiências via Zoom e entregar documentos por assinatura eletrônica (certificado ICP-Brasil).

Durante a pandemia, muitos escritórios formaram equipes mistas e sistemas de correspondentes jurídicos – advogados parceiros em outras cidades que representam clientes em audiências locais. No modelo nômade, o próprio advogado pode ser contratado como correspondente remoto ou criar um escritório virtual, mantendo endereço fiscal fixo mas atendendo online. 

Sugestões práticas: advogados podem oferecer consultorias por videoconferência, montar cursos jurídicos online (já há demanda por compliance digital, marketing jurídico, advocacia previdenciária a distância) e participar de plataformas de prestação de serviços legais. Há grupos e redes sociais dedicados a advogados autônomos, onde trocam demandas; participar dessas comunidades amplia o alcance. 

Palestras e webinars em Direito também viraram fonte extra de renda – um profissional que se especializa em determinada área (trabalhista, tributária etc.) pode vender cursos ou lives online.

A maior parte do nomadismo digital na advocacia está entre advogados autônomos. Eles podem ter um escritório virtual em um coworking ou até mesmo um caixa postal e deslocar-se livremente. Ferramentas essenciais incluem aplicativos de videoconferência (Zoom, Teams), softwares jurídicos na nuvem (para controlar processos e prazos) e assinatura eletrônica. 

O teletrabalho na advocacia melhora a qualidade de vida – advogados eliminam trânsito, ganham flexibilidade e podem organizar o tempo entre clientes e descanso. Por fim, é preciso atenção às normas da OAB: manter atualização cadastral, cumprir relatórios e emitir recibos via MEI ou outro registro fiscal adequado. Mas do ponto de vista prático, o ambiente virtual hoje suporta bem a atuação em qualquer local.

Arquitetos e engenheiros em projetos virtuais

Arquitetos e engenheiros podem trabalhar em conjunto no mesmo modelo BIM 3D, acessando projetos em nuvem de qualquer cidade. 

Tecnologias como BIM (Modelagem da Informação da Construção) permitem que múltiplos profissionais editem um projeto 3D simultaneamente em servidores na nuvem. Além disso, plataformas CAD online (AutoCAD 360, Revit Cloud Worksharing, Archicad BIMcloud) possibilitam desenhar plantas, executar cálculos estruturais e acompanhar projetos detalhados via internet. A comunicação com clientes e equipes de obra também ocorre por vídeos e drones: por exemplo, um engenheiro civil pode orientar um topógrafo local via chamada de celular e ver imagens de drone em tempo real.

Esse trabalho remoto, mais comum em escritórios internacionais, ganhou espaço no Brasil com a necessidade de isolamento. Ao optar pelo nomadismo, arquitetos e engenheiros levam seus computadores pessoais ou acessam servidores virtuais para trabalhar em projetos. 

Sugestões práticas: investir em ferramentas online é fundamental – há softwares SaaS especializados que mantêm o modelo digital centralizado e integrado a pranchetas virtuais. Usar VPNs seguras ou VPN Gateway (rede corporativa) também garante acesso remoto aos arquivos do escritório, mesmo longe. Visitas físicas a canteiros podem ser realizadas esporadicamente, mas muitos detalhes são delegados a parceiros no local (um engenheiro pode orientar assistentes por WhatsApp ou Google Meet). É importante manter registro das aprovações no CREA/CAU: no Brasil, o projeto assinado eletronicamente exige certificado digital, mas não há barreira para desenhar ou calcular obras à distância. Sites de freelancers de engenharia ou arquitetura (Workana, Upwork, 99Freelas) e redes sociais de profissionais (Behance, LinkedIn) são úteis para captar projetos.

Um bom exemplo de adaptação é a utilização do método BIM: como ilustra o esquema acima, em vez de cada profissional desenhar em folhas 2D separadas, todos compartilham um modelo digital único. Essa integração viabiliza que um arquiteto no Sul do país e um engenheiro no Norte colaborem simultaneamente. Devido às demandas de flexibilidade, engenheiros de software e arquitetos de nuvem também têm se destacado em empregos totalmente remotos, mostrando que o conhecimento técnico aliada à infraestrutura permite projetos em qualquer lugar.

Designers: criatividade que cabe na mochila

O universo do design é um dos mais adaptáveis ao nomadismo digital. Além do tradicional design gráfico e do crescente UX/UI, outras áreas como design de moda, joalheria, design de interiores e design de produtos também se beneficiam da mobilidade. Isso porque o processo criativo, de pesquisa, desenvolvimento e apresentação de projetos, pode ser feito à distância, desde que se tenha um bom laptop, softwares especializados e conexão estável com clientes e fornecedores.

Na moda, por exemplo, estilistas nômades realizam desde a criação de coleções digitais até o acompanhamento de produção com fornecedores em diferentes países. Muitos utilizam ferramentas como CLO 3D ou Adobe Illustrator para modelagens virtuais, e compartilham protótipos por plataformas na nuvem. Em viagens, aproveitam para pesquisar tendências locais, visitar feiras e buscar novos materiais. Alguns ainda lançam marcas próprias 100% digitais, com vendas por e-commerce e produção sob demanda. 

No design de joias, o nomadismo digital encontra espaço na modelagem 3D e no e-commerce. Softwares como RhinoGold e MatrixGold permitem criar joias virtualmente, que depois são prototipadas por impressoras 3D e produzidas por ateliês parceiros. Muitos designers vendem suas peças por marketplaces internacionais como Etsy, Shopify ou Amazon Handmade, enquanto mantêm base de criação móvel. Há também designers brasileiros que viajam com pequenas coleções e fazem parcerias locais com boutiques para exposições temporárias ou vendas em pop-up stores.

Já os designers de interiores e de produtos podem desenvolver projetos remotamente por meio de softwares de modelagem e renderização como SketchUp, Revit e Blender. Eles trocam informações com clientes por videoconferência, enviam moodboards digitais e apresentam layouts em 3D com realidade aumentada. Os orçamentos, cronogramas e especificações podem ser gerenciados por ferramentas online, e as visitas ao local do projeto podem ser feitas por parceiros ou contratadas pontualmente. Alguns profissionais usam drones e câmeras 360° para visualizar os ambientes à distância e otimizar seus layouts.

Sugestões práticas: independentemente da área, designers nômades devem manter um portfólio online atualizado em plataformas como Behance, Dribbble ou seu próprio site. Trabalhar com ferramentas colaborativas (Figma, Adobe Creative Cloud, Trello, Notion) facilita a comunicação com clientes e equipes. É recomendável investir em equipamentos leves, como notebooks com alto desempenho gráfico, tablets para sketch digital e HDs externos. Além disso, muitos designers transformam sua expertise em produtos digitais – como e-books, cursos, templates e kits criativos – que geram renda passiva e podem ser vendidos via Hotmart, Creative Market ou Gumroad.

Outra possibilidade é participar de concursos internacionais de design e feiras virtuais, que promovem a visibilidade da marca pessoal mesmo sem presença física. Designers de moda e joalheria também podem colaborar com marcas ou startups de fora, atuando como consultores ou freelancers. Há ainda plataformas específicas que conectam criativos a marcas globais – como 99designs, Upwork, Fiverr e Freelancer.com.

O importante é criar uma rotina disciplinada, com estrutura portátil e canais ativos de contato com o público-alvo. A criatividade não precisa de CEP fixo – ela se alimenta justamente da diversidade de referências culturais, visuais e emocionais que o mundo oferece. E é isso que muitos designers brasileiros vêm comprovando: seja criando joias em Paraty, estampas em Bali ou coleções em Lisboa, o design pode — e deve — circular.

Infraestrutura, ferramentas e burocracia

Para adotar o nomadismo digital é preciso mais do que vontade: ter infraestrutura confiável. No Brasil, a qualidade da internet varia bastante, mas as grandes cidades oferecem conexões estáveis (com banda larga de dezenas de Mbps). 

Quem viaja frequentemente deve investir em modems portáteis 4G/5G e checar coberturas locais. Muitos destinos urbanos e turísticos (como Florianópolis, São Paulo e até cidades médias) já dispõem de coworkings equipados, ideais para trabalhar em mesas compartilhadas. É também possível alugar escritórios virtuais ou estações de trabalho temporárias – esses espaços oferecem internet cabeada, salas de reunião e rede de contatos.

No quesito ferramentas digitais, a lista é extensa: apps de comunicação (Slack, Microsoft Teams, WhatsApp Business), de gestão de projetos (Trello, ClickUp) e videoconferência (Zoom, Google Meet) são básicos para quase todos os profissionais. Softwares de área específica, como EHR (electronic health records) para médicos ou AutoCAD para engenheiros, devem ser compatíveis com acesso remoto. Plataformas de assinatura eletrônica (DocuSign, e-CNPJ com certificado ICP-Brasil) permitem assinar contratos online. 

Em termos de produtividade, apps de VPN e de armazenamento em nuvem (Dropbox, Google Drive) ajudam a manter a segurança e o acesso constante aos documentos, mesmo em viagem. Para traduzir e se comunicar, tradutores online e aulas de idiomas podem ser indispensáveis em destinos internacionais.

Quanto à burocracia, o brasileiro nômade precisa cuidar do básico: abertura de empresa ou MEI para emissão de notas fiscais, pagamento correto de impostos (ISS, IRPF sobre serviços prestados). Muitos criam CNPJ (MEI) para regularizar renda como autônomo. Advogados podem fazer escritórios de sociedade simples, médicos podem manter CRM ativo em sua região-base, etc. Uma dica é usar certificado digital (ICP-Brasil) — advogados, contadores, engenheiros e outros liberais costumam precisar disso para acessar sistemas públicos e assinar projetos. Embora não existam barreiras legais para o brasileiro trabalhar do exterior, deve-se verificar vistos de longa permanência em caso de estadias prolongadas fora – alguns países já oferecem visto específico para nômade digital.

Plataformas de freelance e networking ajudam a captar clientes internacionais: Workana, Upwork e 99Freelas conectam profissionais brasileiros a projetos remotos de todo o mundo. Além disso, vale acompanhar projetos de leis e vistos: o Brasil já instituiu visto especial de nômade digital (Lei 14.506/2022), facilitando estrangeiros que venham trabalhar remotamente aqui. 

Na prática para brasileiros, a atenção maior está em manter boa gestão financeira (usar PIX, maquininha Moderninha, carteiras digitais internacionais, etc.) e atualizar contatos profissionais online (LinkedIn, grupos de Slack/Telegram do setor).

Tendências futuras

O nomadismo digital deixa de ser exclusividade de profissionais de TI e influencia carreiras consolidadas. Estatísticas brasileiras mostram uma mudança de perfil: ainda que startups e marketing liderem, cresce o número de profissionais liberais migrando para o remoto. O mercado digital como um todo cresceu 30% em apenas um ano, gerando 389 mil novas ocupações em 2022, o que indica expansão de setores que suportam o estilo de vida flexível. Espera-se que melhorias na infraestrutura (5G, fibra ótica) e avanço de tecnologias colaborativas (realidade virtual, inteligência artificial) tornem possível ainda mais atividades à distância. Profissões que hoje dependem de presença, como fisioterapeutas e até parte da veterinária, podem ganhar ferramentas inéditas (realidade aumentada para diagnósticos, por exemplo).

No horizonte, as tendências apontam para formatos híbridos e intercâmbio de experiências. Escritórios podem contratar equipes distribuídas, e cidades turísticas – como Florianópolis – investem em coworking e eventos para nômades digitais, formando comunidades de apoio. Novas leis trabalhistas também podem surgir para regulamentar o home office de modo global, facilitando contratos internacionais. Assim, o futuro dessas carreiras combinará especialização técnica com alto domínio de ferramentas digitais. A conclusão é clara: médicos, advogados, professores e outros profissionais clássicos já não estão restritos a um único endereço – podem levar suas competências aonde quiserem, basta uma boa conexão e criatividade para reinventar a rotina de trabalho.


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