Kassandra

Nunca fui um costumaz frequentador de teatros, infelizmente. Quando vou, assisto algum show, concerto, premiação, mas poucas são as vezes que vou para assistir uma peça. As que assisto, geralmente, são encenadas ao ar livre, fruto de alguma intervenção, ou em outros recintos, enfim, que não um teatro, especificamente. Por essas e por outras, talvez seja esse um dos motivos que fui assistir esta peça. Além de toda a curiosidade a cerca da própria peça, ainda havia este motivo: o local onde ela seria encenada. Fora de um teatro, fora de todo aquele ambiente tradicional. Ela se passa, como se refere o folheto do local, numa “casa de espetáculos artísticos”, um espaço não convencional, no Centro da capital.

Num sábado a noite, fui até esta casa. Enfrentei uma pequena fila, com pessoas de todos os gêneros e idades – quando neste local, o mais comum são homens, maiores de 18 anos. Já dentro, achei engraçado que passassem desenho animado – Pernalonga, para ser exato – nos telões. De cara, pensei que fosse uma maneira de descontrair os clientes apesar que naquela hora a clientela estava ali para outra coisa. Estava ali para assistir Kassandra.

Kassandra? O que é Kassandra? Quem é Kassandra?

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foto: Vanessa Soares

Kassandra é a protagonista da peça homônima, dirigida por Renato Turnes, e que tem a atriz Milena Moraes interpretando a personagem da mitologia grega, de nome Cassandra, princesa filha do rei troiano Príamo e Hécuba, irmã de Heitor e Páris – o mesmo que roubou Helena de seu marido, Menelau, iniciando assim a guerra entre gregos e troianos.

Na releitura, Kassandra nasce homem, porém, logo cedo, se descobre uma mulher transgênera e assume sua transexualidade, pois assim sente-se à vontade, possuidora por si mesma. Torna-se uma guerreira do sexo. Se apaixona pelo irmão Heitor e provoca o caos em sua família. Além disso, possui o dom da vidência, prevendo a tragédia que a guerra provocaria sobre seu povo. Contudo, é considerada louca por seus conterrâneos, sendo encarcerada em uma torre, apenas tendo a liberdade quando Troia consumiu-se pelas chamas.

Milena interpreta a personagem de maneira bastante sensual, vestida num justo corpete de couro preto, ostentando um caudaloso penteado e que, com seu salto 15, cujas tiras entrelaçam-se ao longo das pernas, adquire um visual ainda mais agressivo, mais selvagem à poderosa princesa. Dança, canta e simula o sexo nas barras do palco e em cima do balcão do bar, entre garrafas e clientes, à vista dos espectadores, que também se tornam, entre um gole de whisky e uma fala da personagem – todas em um inglês arcaico, tosco, utilizado para contar sua história, para sobreviver ao mundo e se comunicar, por ser uma língua “universalmente compreensível” – personagens, figurantes da peça. Com esse inglês declama, à sua maneira, a canção que diz que “o vencedor ganha tudo”, do grupo Abba. E ela pode sim, ser considerada uma vencedora.

Vale lembrar que esta não é a primeira “casa” onde a apresentação ocorre. Sua primeira encenação data de 2010, realizada no Uruguai, com texto do dramaturgo Sérgio Blanco. Sofreu diversas re-montagens pelo mundo, de Cuba a Grécia. Já no Brasil, desde 2012, a Cia. La Vaca de Teatro é a responsável pela peça.

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foto: André Miranda

Entre Kassandra e o público, outro personagem que merece destaque é o mesmo Pernalonga que aparecia nos telões antes do espetáculo. O mesmo Pernalonga – ou Bugs Bunny, como Kassandra repete no inglês rudimentar – agora na forma de um bonequinho sorridente de pelúcia, considerado o verdadeiro amigo, companheiro da artista, em sua jornada (sub)mundana. É dele que também vem a inspiração da máscara que Kassandra traja durante a peça, dando um exótico show para os presentes. A máscara de um coelho bizarro, sinistro; um coelho que traz as marcas da noite e da guerra de que ela é feita.

Kassandra, a coelhinha, coelhinha da Playboy, guerreira do sexo e princesa de Troia encarnada em corpete, máscaras, orelhas, e, na falta de um rabinho de coelho, um rabão. De cavalo.

Apesar de nunca ter assistido nenhum outro trabalho da atriz, nem do diretor, sei de suas longas trajetórias e do devido reconhecimento que possuem no teatro catarinense e brasileiro. Peças como UZ, Mi Muñequita, Trilogia Lugosi, As Felicianas, Teatro de 5º, D.R, entre tantas outras, provam isso e não me deixam mentir; são sucessos de público indiscutíveis. E Kassandra é mais um desses sucessos, indiscutivelmente.

Assim, Kassandra é mais que uma peça, mais que uma personagem; é um pedaço da história recapitulado ao seu modo, ao seu tempo, contado de seu jeito e sua maneira: nua e crua, violenta e intensa, na visão de uma guerreira e uma princesa, como só ela pode ser. 

Gabriel Faraco
gabriellfaraco@gmail.com

Fotos: Vanessa Soares/André Miranda/Divulgação


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