Entrevista: Conservar para Garantir Energia

Novembro/2001

C. Celso Brasil Camargo, engenheiro eletricista, professor doutor do Laboratório de Planejamento de Sistemas de Energia - Labplan - do Departamento de Engenharia Elétrica (UFSC).

O assunto principal é conservação de energia.

Conservar energia significa necessariamente economizar energia?
O uso racional da energia, aquele que pressupõe usufruir da energia sem perder conforto ou sacrificar a produção, implica na economia de energia. Por outro lado, o ato de "apenas" economizar energia pode redundar em perda de conforto, lazer e mesmo de sacrifícios na produção, principalmente quando esta economia for compulsória.

Como funcionam os programas de conservação de energia?
Estes programas, normalmente conhecidos como "gerenciamento pelo lado da demanda (GLD), são induzidos e estimulados pelos órgãos reguladores. Eles buscam reduzir a demanda em períodos de carência de recursos, incluindo a água, fortes alterações climáticas, dificuldades de investimentos e outros. Neles a concessionária estabelece um controle obrigatório sobre os equipamentos dos consumidores ou então taxa a energia com valores mais altos em certos períodos, por exemplo na hora de ponta, induzindo o consumidor a reduzir o uso da energia nestas ocasiões.

Em que esses programas de conservação favorecem as concessionárias, já que o objetivo delas é justamente vender energia?
Na realidade, um dos objetivos das concessionárias é vender energia, mas não é o único objetivo. Porque se olhar o papel delas na sociedade vai ver que elas têm outros objetivos. Um deles, inclusive, é proporcionar o bem estar social e ainda não agredir o meio ambiente… Todas essas coisas, às vezes, são camufladas pelo objetivo direto de vender a energia. A conservação vem nesse sentido de que você pode atender ao consumidor ou ao cliente e também pode auferir benefícios para a sociedade e para o meio ambiente. Esses programas de GLD vêm nessa direção. Se o programa for bem planejado e bem montado, você pode ter benefícios para todos: para a sociedade, para o consumidor e para a concessionária de um modo geral. O fato de a empresa não estar vendendo não significa que ela está tendo prejuízo. Ela também está economizando por não gerar ou deixar de importar energia. O que importa é o balanço custo-benefício.

Como funcionam as empresas conhecidas como ESCO?
O termo vem do inglês "Energy Service Company" (ESCO) ou, em português, Companhias de Serviços de Energia. Essas empresas são especializadas em fazer auditorias energéticas nas instalações de consumidores e indústrias para propor planos de eficiência energética. A ESCO é uma empresa de capital de risco, não é uma consultora. A consultora chega na empresa, faz um estudo, é reembolsada pelo serviço e vai embora. A ESCO, não. Ela assume o estudo que ela fez e se o cliente concorda, a partir do estudo, faz o projeto, busca o financiamento, faz a compra dos equipamentos e opera o sistema durante algum tempo. A partir daí, os lucros advindos da conservação ou da eficiência energética são repartidos entre a empresa e a ESCO. Quer dizer, se não der certo, ela não recebe nada. Se o projeto der certo, a ESCO passa a receber, durante algum tempo, dividendos pelo êxito do programa.

Com a crise, tende a crescer o mercado para esse tipo de empresa?
Aqui, no Brasil, nós esbarramos com o problema que, para formar uma empresa, é preciso ter financiamento. Os financiamentos para esse tipo de empresa, no Brasil, não são muito fáceis. Então, teria que haver linhas de créditos especiais para que esse tipo de empresas pudessem ser estabelecidas. Corre-se o risco de ter grandes empresas de fora entrando no mercado e alijando "os pequenos" nacionais que querem entrar na área.

Mas não existem determinados projetos que estão sendo financiados pelo BNDES?
Em tese, a gente tem tudo. É como o Sebrae… mas na hora que você vai tentar obter um financiamento, o negócio é mais complicado. Então, faltam fontes de financiamento e facilidades… Menos burocracia para que a gente possa fazer isso… Por exemplo, se eu quiser sair da universidade e montar uma empresa dessas com colegas, eu deveria ter facilidade para fazer isso. No momento, isso não é verdadeiro.

O horário de verão é eficiente para economizar energia?
Não. A economia obtida não é significativa e poderia ser maior se obtida por métodos mais eficientes. O horário de verão pode ter outros benefícios, ou malefícios, mas para economizar energia existem meios melhores e mais eficientes.

Que meios são esses?
Um exemplo é a tarifa diferenciada como o telefone.

Com o novo sistema, essas tarifas continuam valendo?
Na realidade continua valendo. Nas horas de maior consumo, você pode estabelecer tarifa diferenciada.

O Sr. está falando das tarifas azul e verde?
Essas são para as grandes indústrias. Para os consumidores residenciais, que somam 30 a 40% do consumo, ainda não tem nada. A tarifa é constante. Teria que ter um mecanismo de tarifa diferenciada também para os consumidores residenciais. Existem projetos piloto. A CEMIG já fez, a COPEL já fez… É a chamada "tarifa amarela". Você teria a hora da ponta diferenciada do resto. Isso levaria a uma economia de energia muito mais eficiente do que o horário de verão. Tem muita gente que não se adapta ao horário de verão. Inclusive, eu estou orientando uma pesquisa de um psicóloga que vai examinar exatamente isso. Qual é a influência do horário de verão no comportamento das pessoas. Têm muitos que não se adaptam. Os trabalhadores que levantam de madrugada… Os motoristas têm reclamado que não se adaptam a essa mudança… Num país tropical como esse, eu não sei se tem muita vantagem fazer o horário de verão. Tem prós e contras. Para o lazer, é uma beleza. Chegar mais cedo em casa, aproveitar a praia no fim de tarde… Agora, do ponto de vista da eficiência energética, eu acho que os resultados são muito tímidos.

Quais são as tecnologias mais eficientes para reduzir o uso de energia?
Tecnologias intensivas no uso de equipamentos mais modernos e eficientes, no que tange ao consumo de energia, como as LFC (lâmpadas fluorescentes compactas) e os equipamentos com o selo Procel. Tem que partir para equipamentos com tecnologias mais modernas. Motores mais eficientes, que a gente já tem hoje… Muita gente não compra esses motores pois eles são mais caros, mas não sabem que eles se pagam mais rapidamente por economizar energia. Essas lâmpadas compactas fluorescentes… A gente vai pagar um pouco mais caro, quinze a vinte reais, em relação à incandescente que custa um real, mas em compensação, no médio e longo prazo, têm uma economia substancial. Elas duram muito mais e economizam muito mais também. Uma lâmpada compacta fluorescente de 15 a 20 Watts corresponde à uma lâmpada incandescente de 75 Watts. A dificuldade é a aquisição ou o chamado capital inicial. As pessoas vêem que uma fluorescente custa quinze ou vinte reais e vão optam por uma incandescente de um real… Só que esta gasta muito mais porque a lâmpada incandescente produz não só a luz, mas muito calor também. Tem outros equipamentos que são mais eficientes: ar condicionado, geladeira com selo Procel… Só que essas tecnologias são mais caras. A população não adquire por isso. A população quer saber se cabe no orçamento. Se não couber, ela não compra, prefere comprar uma mais barata.

Talvez se houvesse subsídios…
É. São os chamados "prêmios". As próprias concessionárias poderiam financiar isso. As concessionárias têm que colocar na cabeça que, às vezes, não vender é um bom negócio. Elas estão muito atreladas a vender, vender, vender… Às vezes, não vender é uma boa estratégia… Você deixa de fazer investimentos. Algumas vezes, para vender alguns megawatts, você precisa fazer nova linha de transmissão, fazer nova subestação, uma nova usina… Isso tudo custa dinheiro…

Essas tecnologia são nacionais? Como tem sido o desenvolvimento nacional dessas tecnologias?
O mercado nacional já tem alguma coisa, principalmente motores. Temos aqui a WEG e a Eberle que fazem motores de alta eficiência. Já fazemos geladeiras… Temos tecnologia para isso. As lâmpadas, que são importadas, já começamos a fazer. Agora, para ter um mercado ativo, com preço bom, é preciso ter escala. Fica aquele dilema: "não vou fabricar porque não tem escala", "não vou comprar porque está caro"… Tem que mudar isso aí. Essas práticas de conservação tem que ter o dedo do governo. Não tem outro jeito. O governo tem que legislar… Essas agências reguladoras existem para isso: para incentivar o consumo eficiente, para dar subsídios… Não tem país no mundo, por mais liberal que seja, em que o governo não meteu o dedo nisso. O governo tem que ser o agente motivador da eficiência energética. Há três anos, eu escrevi um artigo no Diário Catarinense, alertando sobre esse problema. Um país como o Brasil, um país em formação ainda, não pode deixar essas questões de energia ao sabor do mercado. Não funciona. Em lugar nenhum do mundo funciona. A gente está vendo isso agora nos Estados Unidos. Eles levaram a questão de mercado muito a sério. A segurança de aeroportos era toda privatizada. Muitas falhas aconteceram. Agora, eles estão querendo que essa segurança volte a ser feita pelo Estado. A gente tem que tomar cuidado com isso… Nem tudo pode ser deixado ao sabor do mercado. Tem coisas que o mercado não aceita: as externalidades, os preços sombra… O governo tem que entrar para dar a guia, o rumo… Isso não significa interferência estatal, significa uma função do Estado. Um país como o Brasil tem que ter isso. Há três anos, nesse artigo, eu disse claramente que o governo não deveria privatizar suas empresas. Porquê? As empresas do governo deveriam continuar sendo do governo para regular o mercado e ajudar o governo no problemas de tarifas e coisas do gênero. Hoje, eles estão vendo que isso é verdadeiro. O novo sistema brasileiro foi feito com algumas premissas equivocadas. A comunidade universitária alertou para isso. O governo não deu bola, contratou uma empresa estrangeira, ela fez o processo todo e o resultado está aí. Se fosse usado o modelo que eu chamo de "híbrido", como é na Noruega… o Estado continua com suas empresas, sem problema nenhum. Para construir novas usinas, a iniciativa privada é bem-vinda. Ninguém têm nada contra a iniciativa privada. Mas eu não sou a favor de privatizar usinas hidréletricas, por exemplo. A água é um bem comum… Ela tem outros fatores de interesse social, além de gerar energia elétrica. Nos Estados Unidos, as usinas de energia elétrica com base hidráulica pertencem ao governo. Então, porquê privatizar Furnas ou a CHESF? O governo tem que ficar com essas empresas e administrá-las de forma competente. O erro está em colocar políticos na direção dessas empresas e não técnicos. A privatização não é nenhuma panacéia. Você pode ter empresas estatais tão boas quanto empresas privadas. Basta ter uma gerência técnica e não política.

Quais são as principais barreiras contra a cultura de conservação?
São várias. Primeiro, as culturais, como a indústria do desperdício. Isso vem lá do tempo dos poetas, do Bilac… que o Brasil era o maior país do mundo, que aquilo tudo é bom, em se plantando tudo dá… Essa cultura é enganosa. Países que passaram por guerra, como na Europa, têm uma cultura de conservação muito grande. Aqui, não. (…) Na parte econômico-financeira, os poucos recursos para adquirir equipamentos mais eficientes. Existem até empecilhos legais, como a própria ausência de legislação, normas e regulamentos de incentivo à conservação. Cabe ao governo legislar no sentido de facilitar a conscientização. Não é vir com essa história de multa, de penalização… Não tem sentido nenhum. As pessoas não estão deixando de fazer a economia, mas o grande culpado do estado atual é o governo que não gerenciou adequadamente os reservatórios. Então, fica uma história meio esquisita. O governo não gerenciou, a empresa não pode vender e o consumidor, que deveria por contrato receber um serviço, não recebe e ainda tem que pagar multa. Isso é um absurdo.

E falta informação também?
Lógico. Informação é a base. Se não tem uma boa formação… A televisão, por exemplo, não é usada para informar ninguém… Ela é usada para programas de qualidade discutível…

Um programa agressivo de conservação de energia poderia ter nos poupado dessa crise?
Sem dúvida. Os responsáveis pelo setor elétrico foram ineficientes e incompetentes. A crise já estava anunciada há alguns anos. Infelizmente, no Brasil, o crime compensa e nada vai acontecer aos culpados. Não temos uma sociedade civil organizada para responsabilizar os dirigentes públicos e nem uma justiça moderna, ágil e eficiente. Aí está a raiz de nossas mazelas.

O Sr. acha, então, que falta priorizar a conservação no planejamento do governo?
Falta. Na realidade, a estrutura de planejamento do setor elétrico brasileiro, até a década de 1990, era feita basicamente no lado da oferta. O planejamento era feito para ofertar novas usinas, novas linhas, novas subestações. Ninguém pensava na possibilidade de, ao invés de aumentar a oferta, conter a demanda. É outra possibilidade também. A idéia da conservação começou recentemente. Após o vislumbre dessa crise, começou a se pensar em conservação de energia, mas ainda se faz muito pouco.

E a atuação do Procel, o programa estatal de conservação de energia?
Hoje, ninguém sabe onde ele está. Aparentemente, ele está meio perdido. O Procel deveria ser mais atuante. De vez em quando, fazia uma propaganda usando o pessoal do Casseta & Planeta… Eu até acho errado porque energia não é uma coisa para brincadeira. É uma coisa séria. Então, eu acho que o papel do Procel tem que ser discutido.

Com a abertura do mercado de energia, a conservação pode ser uma "hedging" (proteção) para o consumidor tentar evitar o risco de preços?
Acredito que sim. O consumidor tem que ser conscientizado que a energia para ser gerada custa caro. Agora, tem que tomar cuidado também porque eu acho a nossa energia muito cara, principalmente, no setor residencial. O povo brasileiro não pode continuar pagando tarifa dolarizada.

Porquê cara?
É cara em relação ao salário que a gente ganha. A tarifa brasileira é equivalente à tarifa americana.

Quanto é isso?
A tarifa americana, hoje, está na base de oito centavos de dólar por quilowatt hora. Nós estamos pagando, hoje, vinte dois ou vinte três centavos, no setor residencial… Então, eu acho caro para o nosso padrão de salários. E o governo está dolarizando os preços públicos. O gás está dolarizado, a água está dolarizada, a energia elétrica está dolarizada e nós não recebemos em dólar! Isso é uma brincadeira! Eu estou subindo pela escada com o salário e o preço está indo pelo elevador… Tem que ter um limite para esse tipo de tarifa. Não pode ficar com essa de "tenho que colocar uma tarifa alta porque senão ninguém vai investir aqui no Brasil"… Tem outro aspecto também. Você pode criar um grande país, alavancando o mercado interno. Um país com 180 milhões de habitantes… É um grande mercado!

Então, a perspectiva para o futuro da conservação é boa?
Acho que sim. Acho que não tem saída para o nosso planetinha. Ou a gente faz a conservação ou vamos ter problemas sérios de água, de energia, de aquecimento da atmosfera, de poluição… Tratar a energia e a água como commodity é um grande erro. Eu encaro a energia elétrica e a água como bem comum. Todo mundo tem direito a ter. A gente paga por esse bem, mas não pode deixar isso ao sabor do mercado, não. São bens essenciais. São estratégicos para um país.

Os Estados Unidos sempre são citados como modelo, inclusive para esses programas de GLD, mas essa crise de energia na Califórnia?
Essa crise na Califórnia deixou muita gente que era adepta de carteirinha da privatização de orelha em pé. Ali, houve de tudo… Segundo pessoas que acompanharam a crise, houve quebras de máquinas para poder aumentar a tarifa, houve problema de regulação… Aconteceram coisas horríveis, a ponto de empresas terem ficado à beira da falência devido à crise. Elas eram obrigadas a comprar energia com um preço muito grande, chegou a multiplicar por dez o valor da energia, e não podiam repassar o custo para o consumidor final. Ficaram com o mico na mão. É claro que houve também um aumento do consumo por causa do verão muito quente, mas isso tem que ser previsto no planejamento. Quando eu trabalhava no planejamento, a gente previa exatamente essas condições. Tem que ter uma margem de segurança. Só que essa margem foi sendo "comida" pelo governo. Antigamente, a margem era de 15 a 20%. Hoje, não tem mais.

Quais são os dados de perdas e desperdícios de energia elétrica no País?
Pelos dados observados na atual crise energética, cerca de 30% do consumo poderiam ser evitados com programas de gerenciamento pelo lado da demanda.


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