Entrevista: O Mercado de Energia

Agosto/2001

Edvaldo Alves Santana, economista e engenheiro, professor doutor do Departamento de Economia da UFSC, trabalhando atualmente, em Brasília, na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) como Superintendente de Estudos Econômicos do Mercado e como conselheiro junto ao Mercado de Ações de Energia (MAE).

O assunto principal é a regulamentação do mercado de energia no País

O que está acontecendo com esse Mercado? Ele foi criado há três anos…
E até agora não funcionou…

Exato. Pelos dados que eu tenho, foram gastos R$ 150 milhões para implementá-lo e ele ainda não funciona, inclusive as geradoras querem saber o que vai acontecer…
Eles também querem saber? Eles sabem mais do que a gente. O mercado de energia foi construído com a filosofia de ser auto-regulado. Quer dizer, os agentes fizeram as regras, fizeram acordo de mercado, a Aneel homologou as regras e o acordo. Tudo devia funcionar em torno deles. A Aneel não deveria ter interferência nenhuma. Só que passou dois anos e não funcionou. Então, a Aneel teve que fazer uma intervenção. As causas do não funcionamento são várias. Uma é auto-regulamentação que pode não ter funcionado, exigindo o papel do Estado. Outra é a própria estrutura de governança do MAE. Tem uma assembléia geral, tinha um Conselho Executivo de 26 pessoas que deveria representar a categoria… Então, houve um conflito de interesses que fez com que o mercado não funcionasse. A Aneel também deixou de fazer, em tempo hábil, algumas regras que, talvez, fizesse funcionar melhor isso. Isso resume porque não funcionou.

E vai funcionar?
Não sei. Dia 13 de setembro sai a liqüidação, a contabilização… Esperamos que sim. (…) Ninguém é contra o mercado funcionar. O governo quer que ele funcione, o regulador quer que ele funcione, os agentes… A gente está falando com 67 agentes, todos querem que ele funcione. Então, ou alguém está mentindo ou o mercado tem que funcionar. A data chave é 12 de setembro. É o dia em que vai ser publicado a primeira contabilização de energia com os valores do MAE. Acho que não tem como não funcionar… Aliás, ele está funcionando. Não está tendo liqüidação financeira. Agora, o funcionamento não dependia tanto do governo… Foi entregue aos agentes prá fazer a auto-regulamentação. Não fizeram.

O que aconteceu? Os agentes não tinham experiência?
Tinham. Acho que não funciona. Em lugar nenhum no mundo, o mercado é auto-regulamentado. Aqui, a gente procurou criar uma coisa interessante. Não funcionou. Agora, vai funcionar. Se você for olhar no site da Asmae, vai ver o que o MAE está fazendo… Uma série de resoluções, deliberações, julgamento disso, daquilo… Em quinze dias, nós fizemos muita coisa… Dia 13 de setembro é a data chave.

A crise começou pela falta de investimentos e uma grande dependência de geração hidrelétrica, que depende de fatores não controláveis…
E continua…

E agora, sobre os novos investimentos: quem vai querer investir num período de crise?
O que não tá funcionando é uma parte do modelo que é o mercado. Mesmo assim, quando se fala que não tá funcionando é porque não tá tendo pagamento. Está sendo transacionado R$ 100, 150 milhões de reais de energia, por mês, nesse mercado. O que não está tendo é pagamento. Ninguém sabe quanto cada um tem que pagar e quanto cada um tem que receber. Mas o resto dos investimentos estão sendo feitos… A Aneel toda hora faz licitação de usina. Já foram mais de 25 e sempre tem comprador, usinas prá construir…

Isso faz parte do plano de construção das termoelétricas?
Não, hidrelétrica. A Aneel só licita hidrelétrica. Termoelétrica cada um diz onde quer, escolhe o local, o combustível e a Aneel só dá a autorização. Mas se não tem investimento, não é só por causa do setor elétrico. Quem é que vai colocar milhões, bilhões de dólares aqui sem saber o que vai acontecer com o real?

Um dos problemas relatados pelo pessoal de geração é que ainda não tem linha de transmissão prá desafogar o Sudeste…
Isso é opinião deles… Hoje em dia, falam que não tem linha de transmissão pro Sudeste. Você vai ver daqui a um ano, dois anos, a Aneel e o governo serem criticados porque tem excesso de linha. É bom ficar registrado… Estão sendo construídas linhas pro Sudeste que vão ser usadas 10 ou 15% do tempo… Quer dizer, são linhas que podem não ser economicamente viáveis, mas como tem que desafogar o Sudeste por causa do racionamento… Se constrói agora, mas depois vai ser muito pouco usada. Então, isso vai acontecer e tem que acontecer mesmo. Faz parte. Mas é bom ficar sabendo que vai acontecer.

O Sr. participou desse processo de desverticalização do sistema… Por que toda a geração vai ser privatizada? Por que não foi pensado num modelo híbrido, com o governo ficando com uma parte da geração?
Não, na geração 80% ainda é estatal.

Mas o intuito era desverticalizar para privatizar geradoras e distribuidoras…
Não sei. Isso não depende da Aneel, é o governo. O governo acha que tem que privatizar as empresas dele. Se for federal, seja de geração ou que for, o governo diz que vai privatizar. As distribuidoras estão quase todas privatizadas. Agora, não foi o governo federal, foram os governos estaduais. Das distribuidoras, federais eram só a Light (Rio de Janeiro) e a Excelsa (Espírito Santo). O resto é estadual. Só não estão privatizadas a Celesc aqui, a Copel, mas já está em processo… e tem mais uma outra. Não é o governo federal que mandou, são os governos estaduais. Agora, as geradoras federais, o governo está dizendo que vai privatizar. Se vai mesmo, a gente não sabe. Oitenta por cento ainda é do governo.

E como fica o mercado com 80% das geradoras na mão do governo?
Prejudicado. Por isso mesmo tem essa contradição.

As novas geradoras dizem que o governo pode usar essa parte estatizada…
Prá baixar o preço.

Para baixar o preço, para regular a inflação…
Para eles é ruim isso, o ideal é o preço lá em cima. O ideal é o mercado sem competição e com preço lá em cima. Então, se o governo pensar assim, ele vai fazer certo: mantém estatal. Se o governo imagina, um dia, que as privadas o que querem é aumentar o preço… o governo diz: "ah, então, se é assim, eu vou não vou privatizar, eu vou manter estatal". Mas eu acho que não é isso.

O Sr., como economista, defende a privatização?
Eu defendo a competição. Pode ter competição sendo estatal…

Como funcionaria isso?
Prá ter competição, a empresa não precisa ser privada. A França compete no mundo inteiro… A EDF (empresa francesa de energia) é estatal. O problema que não pode ter é 80% na mão de um único dono. Um dono só tem muito poder no mercado. Então, é só dividir as empresas… que, aliás, a proposta do governo era dividir Furnas em duas empresas, Chesf, Eletronorte, entre outras… Se fizer isso, privatizar é só prá captar recursos. É o que se reclama porque o governo tem 80% na mão do governo… A Chesf, por exemplo, é quase 100% da oferta de energia no Nordeste. Então, não tem competição, é um só. Privatizar é mais problema financeiro prá captar recurso, prá reduzir interferência política nas empresas… É só isso. Prá efeito de competição, não tem problema nenhum ser estatal ou privada.

É interessante ter uma parte de geração estatal prá investir em áreas nas quais o investidor privado não tenha interesse como áreas isoladas?
Mas se tiver uma regulamentação que obrigue… Em telecomunicações, é obrigado a universalizar o serviço.

As empresas vão cumprir por força de lei?
Sim. Estão cumprindo. Se não cumprir, perde a concessão. Depende se o agente regulador vai ou não agir. Em telecomunicações, imagina se fosse estatal como era antes… O consumidor ajuda a fiscalizar, a Anatel está fiscalizando. Tanto que tem empresa investindo mais do que a Anatel queria. Pelo menos, é o que sai nos jornais.

Como a Aneel trata da questão ambiental nestes projetos?
A Aneel se preocupa que, quando houver a licença de instalação, se leve em conta o meio ambiente. Não tem nenhum órgão de meio ambiente na Aneel. Ela só dá autorização prá usina operar depois que o órgão de meio ambiente dá a licença.

Agora, os ambientalistas estão preocupados que se afrouxe a legislação por estarmos num período de crise, de necessidade de expansão da oferta de energia…
Pode ser. É um trade-off. A sociedade tem que avaliar. Falta energia e os órgãos de ambiente continuam exigindo cada vez mais… Isso eu não sei como está sendo feito, mas até nos Estados Unidos está sendo assim. Na Califórnia, a oferta de energia não aumentava tanto por causa das exigências excessivas dos órgãos ambientais. Então, isso é uma negociação… Acho que, no Brasil, a coisa está sendo bem tratada. Tanto que se reclama que o órgão de meio ambiente é muito rigoroso.

Então, voltando ao mercado… O Sr. diz que o importante é a competitividade…
Se é estatal ou privado não é muito importante. Agora, num ambiente competitivo, as empresas estatais são prejudicadas. Para tudo que elas querem fazer é preciso abrir uma licitação. Então, ela chega sempre atrasada.

O problema é a administração?
É, e ter um mercado bem dividido. (…) Tem uma legislação da Aneel que diz que nenhum gerador do Nordeste pode ter mais que 35% do mercado. Lá, um gerador sozinho tem 96%. Enquanto não corrigir isso… Furnas, sozinha, tem 30 e poucos por cento no Sudeste…

Como está a situação, agora em setembro, do sistema elétrico?
No Sudeste, não tem mais risco de apagão este ano. No Nordeste continua dependendo da chuva.

A possibilidade de apagão da eletricidade está afastada, mas e a economia? Muitas indústrias reduziram a produção…
Sim, e é um problema sério. Tiveram que reduzir, não sei se perderam dinheiro… Tiveram que reduzir, em média, 25%. Mas teve indústria que reduziu mais que isso…

O que isso vai representar no fechamento do ano?
Vai afetar o PIB (produto interno bruto), vai reduzir os empregos.

A expectativa era crescer aproximadamente 4%…
Não vai crescer. Não tem como…

Agora, tem uma notícia de que esse racionamento pode causar um prejuízo de R$ 1,2 bilhões às geradoras por conta do Anexo 5 dos contratos de energia…
Esse número já foi de 18 bilhões, agora tá em 6 bilhões… O contrato de compra e venda de energia entre as geradoras e as distribuidoras tem uma cláusula, que chama Anexo 5, que diz que se a geradora não puder cumprir o contrato… Isso acontece em qualquer contrato. Se eu não posso entregar o produto, eu tenho que comprar no mercado ao preço que tiver e fornecer. Esse Anexo 5 é prá geradora não precisar comprar tanto no mercado, então tem uma redução disso. Só que essa redução que foi aplicada, foi pequena. Era prá proteger o gerador. Ela (a cláusula) acabou protegendo, mas não protegeu tanto. Sem o Anexo 5, seria pior para o gerador.

E os geradores vão ter que pagar essa conta…
Não é só isso (R$ 1, 2 bilhões), é muito mais. Ou paga ou faz um acordo com o distribuidor.

A proposta da Associação Brasileira das Geradoras (Abrage) é que o governo edite uma legislação específica…
Lá no contrato também diz que, em caso de racionamento, também tem uma legislação específica. E o governo está dizendo que não vai fazer uma legislação específica, ele quer que se cumpra o contrato. Acho que isso vai ser decidido na justiça. Porque o mesmo contrato está dizendo que, em caso de racionamento, sai uma legislação específica.

As geradoras estão se reportando a um acordo feito no ano passado com o MAE…
Isso é outra coisa. É a recompra de energia. No ano passado, teve um acordo no MAE, em que, no caso de sobra de energia, se a distribuidora não está vendendo tanto quanto comprou, a geradora poderia comprar a um preço menor, é o que se chama de recompra. Agora, as geradoras querem aplicar a recompra para o caso contrário.

Revertendo os valores da dívida em créditos para a distribuidora…
A distribuidora não quer, obviamente. É um problema contratual. Eles vão ter que resolver entre eles. O governo está certo em não interferir nisso. O contrato, inclusive, tem seis cláusulas dizendo como resolver uma controvérsia. Porquê o governo tem que resolver essa controvérsia?

Falando sobre consumo: como vai funcionar o fator X na redução das tarifas de energia?
Todas as empresas que foram privatizadas… No caso da Escelsa, a cada três anos, no caso da Light, a cada cinco anos, e no caso da maioria, a cada cinco anos, é feito uma revisão da tarifa. O reajuste é anual, mas durante um determinado período, dependendo do contrato, tem uma revisão. Nessa revisão é calculado um fator X, que é o ganho de produtividade da empresa. No caso da Escelsa, foi feito agora em agosto. Durante três anos, ela fez o diabo prá enxugar custos, então tudo que ela ganhou é dela. No final dos três anos, a Aneel calculou, junto com ela, quanto foi esse ganho. De agora em diante, esse ganho, durante os próximos três anos, será repartido com o consumidor. Isso reduz o reajuste da tarifa a cada ano, durante três anos. Da Escelsa, deu quase 2% a cada ano. Se em 2002, o IGPM (índice geral de preços no mercado) for menor do que isso, a Escelsa vai ter um reajuste negativo. Isso é feito para todas as empresas.

A idéia é que isso incentive a eficiência e que esse redutor descresça…
Para as empresas mais eficientes, ele começa alto e vai decrescendo, a cada ano. Para as empresas ineficientes, ele começa baixo e cresce. Quer dizer, ele vai ser positivo para todo mundo. Tem empresa que não tem ganho de eficiência. A Cepisa, no Piauí, e muito provavelmente a Celesc, por exemplo… Mas, nem por isso ela deixa de ter um fator X, senão você acaba prejudicando os mais eficientes.

Essa redução da tarifa vale para os consumidores cativos…
É só para o mercado cativo, que é quase 100%. No Brasil inteiro, só tem quatro ou cinco consumidores livres. E não sei se vai ter…

A idéia não é liberar o mercado, a partir de 2005, para que todos os consumidores possam escolher o fornecedor?
Potencialmente livre. Ninguém é obrigado. E ninguém está querendo ser livre. (…) A Volkswagen é livre. Em lugar de comprar da Eletropaulo, ela compra da Copel (PR), a um preço mais barato. Agora, porque os outros não querem comprar mais barato? Não sei. Isso é uma incógnita para a Aneel. O consumidor livre, em geral, consegue um preço menor. Os grandes consumidores não querem ser livres, querem permanecer regulados.

Eles têm medo de se expor aos riscos?
Mas é mercado. Se eu sou livre e você aumenta o preço, eu vou comprar de outro. As empresas não estão querendo isso. Agora mesmo, no racionamento, está tendo esse leilão de energia… Quem consome menos do que a meta pode vender o excedente. Muitos tiveram medo disso porque isso significaria ficar livre durante um período. Muitos disseram: eu quero participar disso, mas não quero ser livre. Grandes empresas… Tem empresas que, com todo o grupo junto, consomem mais do que o estado de Santa Catarina… (…) Ninguém entende isso. É só vantagem para o consumidor. "Ah, seria ruim se eu tiver comprando de uma empresa e pifar a linha dela…" Mas não existe isso, você não sabe de onde está vindo a energia que está comprando… É só um contrato financeiro. O futuro vai nos dizer porque os caras pensam assim.

Informações relacionadas à entrevista neste site:


Para navegar:

  • Administradora de Serviços do Mercado Atacadista de Energia Elétrica (Asmae)
    www.asmae.com.br

  • Agência Nacional de Energia Elétrica
    www.aneel.gov.br

  • Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia (Abrace)
    www.abrace.org.br

  • Associação Brasileira das Grandes Empresas Geradoras de Energia Elétrica
    www.abrage.com.br

  • Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica
    www.abradee.org.br

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