Entrevista: Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento

Dezembro/2001

Ariovaldo Bolzan, engenheiro químico, professor doutor em Controle de Processos, diretor do Centro Tecnológico (UFSC), membro do capítulo Ciência e Tecnologia da Agenda 21 Catarinense.

O assunto principal é desenvolvimento científico e tecnológico.

Como está a organização da Agenda 21?
A Agenda 21 abrange vários assuntos e a Universidade Federal foi convidada pelo governo do Estado para coordenar o assunto de Ciência e Tecnologia. Nós aceitamos o desafio e solicitamos a colaboração de uma pessoa experiente na área, que é a professora Sueli Andrade. O trabalho está sendo feito no sentido de ouvir a comunidade e organizar reuniões. (…) São várias pessoas que estão nesse processo, coordenado pela profa. Sueli, no sentido de ouvir, realmente, o que a sociedade catarinense pensa a respeito da Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento sustentável.

E aqui dentro da UFSC? A UFSC está elaborando uma agenda local, uma agenda interna?
O nosso trabalho, obviamente, é um trabalho baseado na UFSC, então, a maioria das pessoas são da UFSC. (…) É um trabalho de muita paciência, também de ouvir bastante, de elaborar... Até agora o grande mérito é da Prof. Sueli; porque eu, realmente, não consegui participar das coisas; por causa da greve. Para quem administra a Universidade, é um momento muito complicado, demanda muito da gente, muitas reuniões, enfim… Eu tenho acompanhado o trabalho que está evoluindo para elaboração de documentos. Foi feito todo o trabalho de estratégia, de abordagem, de se conseguir parceiros, e tem se conseguido um belo trabalho.

Como o Sr. analisa a visibilidade da ciência e tecnologia para o cidadão comum?
A ciência, a tecnologia e a inovação são três eixos em um só sentido. A ciência, em particular, tem um potencial de visibilidade muito pequeno na sociedade. Porque as pessoas, os chamados cientistas, constróem conhecimento na área científica, desenvolvem a ciência e muito do que se faz demora anos para que possa gerar tecnologia e, às vezes, geram a tecnologia, mas não vão fazer parte de um processo de inovação. E o que a sociedade mais percebe é a inovação. Ou seja, a inovação é a construção da ciência e tecnologia que se tornou visível para a sociedade. O cidadão percebe que a vida dele vai melhorar ou que ele vai ter um ganho na hora que algum processo transformou ciência e tecnologia em tecnologia e inovação.

Tem certas coisas que ficam menos visíveis…
É. Vamos pegar a energia elétrica, por exemplo. Nós temos um exemplo claro de como a coisa pode ser transparente ou como ela pode ser muito visível para a sociedade: a falta de energia. Da energia se percebe muito mais a falta dela do que a disponibilidade dela. Então, nos últimos 15 ou 20 anos como raramente faltava energia, você podia comprar o aparelho que quisesse, colocar na tomada e funcionava, não tinha problema nenhum. Então, todo o desenvolvimento da ciência na área de energia hidrelétrica, no caso que era a que predominava no Brasil, o cidadão não percebia. Quando que o cidadão começou a perceber que energia era uma coisa importante para ele? Quando veio a ameaça de ter os apagões, vamos dizer assim. Então aí se discutiu que não houve planejamento, que não houve investimento, embora haja energia, haja tecnologia para energia elétrica, eólica, solar...

Biomassa…
Biomassa e até a nuclear. Há muita energia disponível. O País não conseguiu, através de seus planejadores, se preparar para o aumento de consumo… foi o que aconteceu e que fez com que, associado a uma estiagem prolongada, os nossos depósitos de energia, ou seja, os lagos das hidroelétricas tivessem que ser esvaziados para gerar energia na época de crise.

Aí a gente vai entrar num problema que, me parece, um problema persistente: uma política descontínua de investimentos desde o nível federal até o nível estadual.
Lógico, nós passamos por isso. Alguns estados, não muitos, como São Paulo que tem a FAPESP, conseguem suprir a deficiência federal facilmente. A FAPESP tem uma ação pró-ativa, não é só passiva, ela induz os investimentos. Para fazer a pesquisa do mapeamento genético do amarelinho, ela não fez um edital aberto de genética e alguém disse: "Nós vamos fazer a pesquisa". Não, ela falou: "Eu quero saber quem pode fazer a pesquisa do amarelinho", pesquisou, fez um consórcio e financiou. Os benefícios que isso possa ter para a sociedade ainda não são sentidos nesse momento. Bom, a ciência vai fazer o mapeamento genético do amarelinho... Tudo bem, e daí? Vai ter um monte de números, um monte de tabelas, e daí? Alguém vai ter que transformar esse conhecimento, vai ter que se descobrir como, a partir do conhecimento gerado, pode-se evitar doenças e tal. Na hora que evitar doenças, então, você vai ter a inovação. Há que se citar que a FAPESP funciona muito bem e entre a sua criação e a sua efetiva operação passaram-se mais de dez anos. Então, não estou em absoluto defendendo ninguém nem criticando ninguém, só estou registrando um fato histórico.

Aqui, em Santa Catarina, nós temos uma dotação orçamentária estadual que não é repassada…
Então, por que isso? Porque, quando você cria uma nova despesa dentro do orçamento público, cria-se uma mudança de destino do dinheiro. Se você tinha 100% de dinheiro arrecadado para fazer um conjunto de coisas, agora você já não tem mais 100%, você só tem 98% para fazer aquelas mesmas coisas, você vai ter que deixar de fazer aquelas coisas para passar a fazer esta. E a reação dos políticos, dos administradores, dos planejadores não é uma coisa assim: "Ah, ótimo, então agora dá para fazer isso". Eles também tem que sentir a força com que a sociedade quer que aquilo aconteça para você captar lucro, porque o orçamento é uma peça de planejamento versátil. Você consegue fazer, dizer que fez, quando não se fez; tem uma série de experiências legais que permitem saídas pela tangente, vamos dizer assim. Mas não tenha dúvida de uma coisa: se você não tiver pessoas qualificadas, você nem passa perto de geração de conhecimento científico. A primeira coisa que você tem que ter são pessoas qualificadas. Segundo: igualdade de escolha, de trabalho e de idéias. Uma pesquisa científica não surge de encomenda. Você tem que dar liberdade para o pesquisador. Depois você tem que dar apoio financeiro. Se você tiver essas três coisas: pessoas competentes, livres para pensar e dinheiro, você vai gerar um quantidade de conhecimento científico muito grande. Que, se não estiver associado a um uma boa estrutura de geração de tecnologia e uma boa cultura de inovação, não vai surtir efeito nenhum na sociedade. O máximo que você vai conseguir é produzir artigos de revistas internacionais indexadas de alta qualidade; você vai ter pesquisadores citados no mundo inteiro, etc e tal… Mas o cidadão que está pagando imposto não vai ter nenhum benefício daquilo. Então tem que ter ciência básica, muito bem apoiada, muito bem financiada, mas tem que ter pesquisa tecnológica também. E tem que ter cultura de inovação. Por que é que eu digo cultura? Porque quem faz inovação são as empresas e não o Estado.

O que é que é mais difícil: desenvolver a pesquisa ou transferir o conhecimento gerado?
Não tem uma coisa mais fácil ou mais difícil que outra, todas são importantes. Por isso que eu digo: se você tem uma bela base de trabalho científica e não tem o trabalho tecnológico, esse conhecimento científico não gera conhecimento tecnológico, portanto você não consegue ter base para a inovação. Às vezes, você consegue ter alguma coisa no sentido contrário. Se você pegar o Japão, a Coréia, são países que não tem tradição de conhecimento científico, mas conseguem se desenvolver tecnologicamente e conseguem inovar, a um custo talvez maior, ou até por uma característica cultural ou alguma coisa que o valha. O caminho certo é você ter uma base científica, cientistas capacitados, trabalhando na questão tecnológica, na engenharia. Não existe países desenvolvidos que não tenham engenharia desenvolvida. O mundo hoje, se você olhar, é o que é graças à engenharia. No sentido lato… Não estou dizendo com isso que só os profissionais titulados engenheiros são importantes. Eu estou falando que o conceito de engenharia é importante. Você não precisa ser engenheiro para trabalhar engenheirando... (…) A inovação, onde que há a inovação? A inovação é a ponta do iceberg, realmente. Quer dizer, você tem que ter empresas instaladas que conseguem pegar conhecimento científico que evolui para conhecimento tecnológico e transforma isso num diferencial naquilo que ela está produzindo. Então, se o Brasil consegue explorar petróleo em águas profundas é porque o conhecimento científico virou tecnologia e essa tecnologia foi aplicada, foi montada e hoje explora o petróleo. Óbvio que o conceito de inovação é muito amplo. Você pode pegar a caneta de ponta porosa, que antes era esferográfica… Aí alguém com um monte de conhecimento científico e tecnológico, porque nessa caneta tem viscosidade, resistência da ponta, uma série de fatores, juntou tudo isso e fez uma caneta de ponta porosa, que hoje vende aos montes no mundo. Agora, você pode ter também uma inovação num procedimento cirúrgico, num equipamento de diagnóstico, num automóvel…

Sempre tem coisas para inovar...
Exatamente. Por exemplo, vamos pegar o caso do nosso combustível: álcool. Um país grande, com tecnologia e com um potencial enorme para usar combustível renovável, ainda está baseado num combustível fóssil... O pró-álcool, antes de ser um trabalho científico, tecnológico ou uma inovação, foi uma decisão política do País... (…) Começou-se a investir nas várias frentes científicas e tecnológicas necessárias para se manter e para se viabilizar o álcool como um combustível. Ora, tudo está inserido dentro de que alguns não gostam de dizer, porque é um palavrão: a questão do mercado e a questão política de forças. Você tinha um país que investiu desde 1950 numa empresa chamada Petrobrás; que produz o que? Petróleo. Aí na década de 1980 isso se modifica: "Não, agora produzir petróleo não é mais importante, o importante é produzir álcool". Então, tem toda uma correlação de forças de mercado, o preço internacional do petróleo… Então, sabe-se que se o preço do barril de petróleo está abaixo de um determinado valor, o álcool não é economicamente viável para ser usado como combustível… Estrategicamente falando: você produz toneladas, milhões e milhões de litros de álcool sem gastar um dólar, porque o álcool é feito todo dentro do País: você planta a cana, você mói a cana, fermenta o caldo, separa e produz o álcool, só com reais, não precisa dólar.

E utiliza o mercado interno…
Todo o mercado interno. Enquanto o petróleo você tem que entrar com dólar. Então, o erro estratégico é esse. E para você investir no aumento da produção do petróleo, você também gasta em dólar. Enquanto para aumentar a produção de álcool, você não gasta dólar. Agora, tem o outro lado da história: para você aumentar a produção de álcool, você avança em áreas da agricultura em que se planta alimento para poder plantar a cana. Então, é um jogo que tem que ser olhado de cima.

Tem que ter um manejo sustentável.
Exato. Um mapa. Então, ao meu ver o álcool deveria ser estudado desde a seleção genética da muda de cana até o processo que separa a água do álcool, passando pela tecnologia do motor. Quando o álcool surgiu, um carro a gasolina fazia 10 quilômetros por litro e um carro a álcool fazia 6 quilômetros. Um carro à álcool, pela manhã, não pegava de jeito nenhum…

Como está a transferência da tecnologia gerada pelo Centro Tecnológico da UFSC?
Olha, o Centro Tecnológico é um centro, na verdade, diferenciado na UFSC e diferenciado de outros centros tecnológicos do Brasil todo. O nosso grande foco é a interação com a empresas, com agências federais e estaduais. Esse é o nosso lado forte. Nós fazemos pesquisas, vinculadas, cooperativas. Quando uma empresa financia um projeto dentro do CTC, a transferência é automática e, o resultado da pesquisa, a empresa vai levar para dentro do seu processo de produção. Então, a inovação se dá em duas vias. Dificilmente você tem, no CTC, algum trabalho que gerou um conhecimento científico e depois um conhecimento tecnológico, e virou produto de prateleira que vai ser vendido depois: "olha, tenho aqui a tecnologia para fazer X, quem quer comprar?" Não, não é assim. No mundo inteiro não é assim. Pesquisa é interesse, o que envolve muito dinheiro. O Estado não pode financiar pesquisa tecnológica para a inovação, quem tem que financiar é a indústria. O Estado tem que financiar a indústria, mas o Estado não pode financiar, a fundo perdido, uma pesquisa que é de interesse de uma empresa, que vai colocar o produto no mercado, que vai ganhar dinheiro com isso. Não, isso é um problema dela. O Estado tem que olhar os setores estratégicos e dizer: "Olha, aquele setor é importante, então, nós vamos financiar aquela empresa para pesquisar, depois ela vai pagar". O Estado tem que financiar a pesquisa básica. Essa tem que ser a fundo perdido. Tem que escolher os pesquisadores e cientistas renomados, aqueles que saibam: "está aqui o dinheiro, você só precisa prestar contas de como você gastou, porque você faz o seu trabalho e posso confiar em você". É isso que precisa. Você não pode chegar para um pesquisador desses e dizer: "olha, eu quero que você invente um negócio qualquer, você tem dois anos para fazer isso". Não é assim que funciona. Depois que se descobriu a eletricidade passaram-se décadas para que alguém fizesse uso da energia elétrica. Assim foi a parte nuclear e a parte de biotecnologia também.

Aí o senhor está falando da ciência aplicada. Lembro de uma palestra do Eng. Faraco, que é presidente da FIESC, dizendo que o industrial sempre foi muito reticente em fazer essa parceria com a universidade, porque a universidade é muito lenta, tem muita burocracia… O senhor acha que está mudando? Já foi assim e está mudando?
Isso passou, foi um ciclo. Agora, tudo bem, mas vamos voltar na década de 1970 ou 1980... Como é que o Brasil funcionava? O Brasil tinha um mercado fechado. Quando alguém se estabelecia e passava a produzir algum produto, ele já tinha a concorrência do cara que fazia o mesmo produto lá em outro estado. Então, era uma concorrência interna, em que havia acomodações. Então, se eu estou vendendo, tem gente comprando o meu produto, para que é que eu vou procurar inovar? Essa é a conta que o empresário faz. É a conta do final do mês. Quanto que eu recebo? Quanto que eu arrecadei? Quanto que me custou para eu fazer isso? Quanto que me sobrou para eu poder pagar os meus impostos, os meus funcionários? E quanto sobrou para mim? Porque a nossa cultura é uma cultura da Península Ibérica: "você tem dinheiro? então bota numa poupança ali que vai ficar rendendo para você todo o mês". Não é a cultura do risco. É uma cultura de acomodação. É a mesma cultura do empresário brasileiro. É uma cultura de acomodação: "para que é que eu vou gastar dinheiro inventando uma coisa, se eu estou ganhando dinheiro com isso aqui?" Eu estou falando da média, não falo de todos. Então o País tinha isso. E o País evoluiu, do ponto de vista tecnológico, em setores que houve, no passado, incentivos para exportação porque o País precisava de divisas. Então, quando o País descobriu que gastava muito dinheiro com o petróleo, se investiu na Petrobrás, na exploração do petróleo; se conseguiu explorar petróleo em águas profundas com a melhor tecnologia do mundo, só por causa disso. Então, se investiu na pesquisa de base, se investiu no pesquisador. Quando se passou a sentir os efeitos da globalização, muitos setores passaram a sentir a questão de sobrevivência: "ou inovo, ou eu estou morto". Então para inovar, para ter conhecimento, tem que chegar na Universidade. Primeiro precisa ter pessoas competentes, competentes naquilo que está fazendo, não só na gestão, não só nos métodos gerenciais; que possa entender para onde está indo aquele setor no mundo. Quando a nossa indústria cerâmica aqui em Santa Catarina resolveu exportar e descobriu que ganhava muito dinheiro exportando, o que é que aconteceu? Eles se aproximaram da universidade. Por que? Porque eles não tinham qualidade para exportar ou exportavam uma porcentagem muito pequena daquilo que produziam, porque a maioria do que eles produziam estava fora das especificações... A mesma coisa para o setor metal-mecânico. A mesma coisa com o setor de alimentos, que ainda não é tão próxima da universidade quanto a gente gostaria. Porque ainda exporta produtos quase crus, vamos dizer assim. Veja a suinocultura: se pega o porco, parte no meio, limpa, congela e exporta. Isso quando se poderia estar pegando o porco, limpando, processando e exportando todos os componentes já embalados. Então, quando o Brasil exporta avião, ele também importa um monte de coisa para montar esse avião. Por que? Porque ele ainda não tem tecnologia, dentro do País, para fabricar todo o avião. A asa vem do Chile, a cauda vem da Espanha, a turbina vem da Inglaterra, os sensores vêm dos Estados Unidos. Depois se monta o avião. Ótimo. Você junta todas as peças, elas custam X; se aquilo virou um avião, custa 3X. O País ganha, mas ganharia mais se tivesse todos os fornecedores dentro do País. Nas circunstâncias do mundo globalizado, isso não é nem estratégico, mas é importante. Acredito que a EMBRAER esteja buscando esse tipo de coisa.

Falando de resultados, o Sr. pode citar dados sobre a pesquisa desenvolvida no Centro Tecnológico?
Nos últimos anos, os professores do Centro Tecnológico têm aumentado muito a sua participação em projetos com empresas. Ao longo do tempo, os recursos que a FEESC movimentava eram sempre 70% de recursos vindos de agências de fomento (FINEP, CNPq, CAPES) e 30% eram privados. Hoje a situação se inverteu: 70% vêm de empresas privadas e 30% vêm dessas agências estatais... A demanda de empresas pela universidade aumentou bastante. Agora, as empresas é que vem à universidade.


 

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