Entrevista: Quem opera a energia

Setembro/2001

Sérgio Iokilevitc, engenheiro eletricista do Núcleo Regional Sul do Operador Nacional do Sistema (ONS).

O assunto principal é a atuação do operador nacional do sistema elétrico (ONS).

Como trabalha o ONS?
Ele é o agente responsável, de acordo com o modelo setorial, pela execução de uma série de atividades de operação ou, basicamente, operar o sistema com qualidade, confiabilidade, continuidade...

É o Operador que autoriza e supervisiona o despacho de energia através do sistema elétrico...
Isso faz parte da atividade de operação. Além da questão clássica de promover qualidade, confiabilidade, economia e continuidade, tem uma nova atribuição em relação ao que havia no passado de coordenação de operação no País, que era feita pelo GCOI (Grupo de Coordenação de Operação Integrada), que é a administração do serviço de transmissão no sentido de contabilizar, promover a liquidação do faturamento dos serviços das empresas transportadoras de energia. Além disso, o Operador também tem que sinalizar para a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) as carências da rede básica, onde existe necessidade de a Aneel promover alguma autorização, alguma licitação para expansão da rede. Digamos assim, o Operador é quem analisa e avalia tecnicamente o porte do sistema face à perspectiva de crescimento da demanda, etc.

Quem fazia isso antes da criação do ONS, em 1998?
Não era feito exatamente dessa maneira. Tinha um órgão colegiado, o GCPS (Grupo Coordenador de Planejamento do Sistema), que fazia isso não só na transmissão, mas também na geração. Só que não esse processo da Aneel licitar e tal... Tinham alguns clientes, digamos assim, cativos que estariam construindo em função de que era basicamente empresas estatais e isso era mais ou menos repartido por área de atuação. Esse modelo foi mudado pelo novo modelo setorial.

Como vocês organizam o sistema?
O Núcleo congrega pessoas pertencentes a equipes de duas diretorias: a Diretoria de Planejamento e Programação e a Diretoria de Administração da Transmissão. Tem aqui também o Centro de Operação de Sistema, que executa a operação do sistema em tempo real. (…) Em Santa Catarina, tem um centro de operação do sistema regional - Centro de Operação do Sistema Regional Sul - que está vinculado ao Centro Nacional de Operação do Sistema que é pertencente à diretoria de operação do ONS que promove a operação em tempo real, a nível regional, e tem um núcleo de estudos - Núcleo Regional Sul - que congrega equipes, pertencentes a duas diretorias, de forma a imprimir um conhecimento regional e local nas atividades do ONS para agregar qualidade ao trabalho. Tem um Núcleo Regional Sul e um Núcleo Norte-Nordeste, localizado em Recife. O escritório central é no Rio de Janeiro e o Centro Nacional de Operação do Sistema fica em Brasília.

Como está a situação, agora em setembro, do sistema? Em princípio, com o começo das chuvas de primavera, não há mais risco de apagão…
Apagão é um termo mau utilizado, ele era associado a um corte intempestivo no suprimento de energia elétrica que poderia trazer um blecaute com um tempo específico de algumas horas, etc. O que tem sido chamado de apagão, na verdade não é exatamente o que o setor elétrico utilizava como jargão a respeito de apagão. Então, sobre o risco de apagão… isso não tem necessariamente a ver com a questão energética. Agora, o risco de um abastecimento energético comprometido existe, tanto existe que nós já estamos vivendo um período de restrição de consumo. Está sendo bem administrada essa questão. Não houve uma queda nos níveis de armazenamento além daquelas que nós estávamos contemplando que seria possível haver para esse período com essa carência de chuva e graças a que? Graças, principalmente, à resposta que a população deu ou, enfim, às medidas que o governo tomou de última hora de modo a evitar um desabastecimento maior.

Vocês estão acompanhando a demanda há bastante. Qual é a necessidade de expansão do sistema?
Eu confesso que eu desconheço os números, até porque nós estamos mais ligados à parte de operação, não estamos tão ligados à questão da expansão. O que a gente vê é que se você tem um sistema que, no lado do consumo, por exemplo, cresce 5% ao ano… Não é esse o número, mas digamos que seja 5%… Então deveria haver uma oferta firme de energia de 5%. Firme que eu digo é oferta efetiva, real de 5% a cada ano na capacidade. Uma oferta hidráulica, quando você não tem certeza do que vai ter de água, ela é muitas vezes você pode agregar potência, mas não está agregando energia porque falta água prá isso. (…) Nós sempre acompanhamos a demanda, dia a dia, hora a hora, mês a mês, dependendo a finalidade que temos… A demanda é uma coisa a ser atendida. Mas a demanda só existe depois de atendida, antes ela é uma previsão de demanda, digamos assim…

Nessa previsão de demanda, o que vocês tinham de indicação? O novo sistema elétrico é "indicativo" na geração e "determinativo" na transmissão…
No novo modelo o planejamento foi concebido de forma a ser determinativo na transmissão no sentido de que a Aneel licita e depois os agentes vão construir ou se interessar em construir, as linhas são muito bem especificadas e a geração, não. A geração é algo assim como existe um levantamento de que, no caso da geração hidrelétrica, um em determinado rio, uma determinada bacia tem um determinado potencial e espera-se que o agente construa uma usina assim. Existe alguns compromissos de como deve ser essa usina, esses aproveitamentos, mas de uma forma muito mais indicativa do que determinativa. Se funciona ou não, eu não sei. Eu acho que tem problemas porque se não tivesse nós não estaríamos nessa situação.

Alguns geradores dizem que o Sul poderia tentar transferir uma possível sobra de energia para desafogar o Sudeste, mas faltam linhas de transmissão.
Essa sobra de energia é circunstancial, ela depende de uma determinada conjuntura que tem a ver, inclusive, com fenômenos naturais do tipo climáticos e metereológicos. Normalmente, ao longo dos últimos vinte e cinco anos de uma interligação que começou a ser utilizada mais fortemente entre Sul-Sudeste, o Sul recebeu energia do Sudeste muito mais tempo do que mandou. A capacidade de transmissão é um gargalo tanto no sentido Sul-Sudeste quanto Sudeste-Sul. A expansão dessa transmissão é onerosa. Claro que se eu sou um gerador e quero colocar a energia gerada em qualquer lugar, eu vou querer que as linhas surjam para que eu poder empurrar essa energia. Agora, se eu sou um transmissor e eu faço faturo de acordo com o uso da linha, então eu vou fazer uma linha para ser usada um mês a cada vinte meses ou coisa desse tipo? (…) O estrangulamento da transmissão existe, ele é real, mas não acredito que seja um descalabro tão grande porque economicamente é difícil conseguir justificar a expansão com as taxas de retorno que normalmente a gente vê o mercado querer pagar em relação aos investimentos que são feitos. O grande problema, na verdade, está além disso. A infra-estrutura é obrigação do governo, é um business que a iniciativa acha que vale a pena, o que é isso? Um país pode colocar essa questão, que é tão estratégica para o seu desenvolvimento, na mão de um esperto, no bom sentido, empreendedor ou ele tem que esperar que, talvez, não surjam empreendedores e qual é alternativa que ele tem? Essa que é a questão… Vamos terceirizar defesa, educação… ou não?

Na opinião de alguns pesquisadores, o sistema na região sul funciona na justa medida e que, na verdade, não existe grande sobra de energia para deslocar para o Sudeste, por exemplo…
A concepção de funcionamento do sistema "interligado" brasileiro como o próprio nome diz é para funcionar de forma interligada. Eu não vejo "nós" e "eles", essa visão separatista… O sistema não foi concebido para funcionar dessa maneira, ele foi concebido para funcionar de forma interligada, integrada. A questão da complementaridade hidrológica, quando no Sul está seco e no Sudeste está molhado ou ao contrário, nem está comprovada, existe dúvidas em relação a isso, inclusive eu tenho dúvidas se é complementário ou não… O que a gente vê é que o Sul tem um regime hidrológico nos seus aproveitamentos um pouco mais intempestivo do que no Sudeste. Então, você pode passar de uma situação de seco prá molhado e molhado prá seco devido a fatores climáticos, fatores topográficos, fatores de relevo no rio Iguaçu, na bacia do Rio Uruguai ou mesmo no estado do Rio Grande do Sul, que faz com que, aqui, tenha um regime muito mais intempestivo do que no Sudeste que tem reservatórios com período de regularização, ou seja, sair do cheio para vazio e re-encher novamente, mais lentos, mais cíclicos…Agora, no Sul realmente tem uma característica em relação a picos de vazões que existem… os reservatórios não absorvem todos esses picos, também porque não foram construídos para isso. Ninguém vai desapropriar uma área enorme para usar só de vez em quando, quando dá um toró danado, um diluviozinho em cima da bacia, você pode inundar aquela área e não ter casa nenhuma ali, não ter nada plantado ali durante 95% do tempo… É como ter uma casa com cômodos enormes que vai ser ocupada uma vez só ao ano… Não vale a pena. Você está imobilizando ali um patrimônio, um recurso que poderia usar de outra maneira. (…) Claro que teria sido melhor nós termos capacidade grande de transferência de energia pro Sudeste nesse período que o Sul teve alguma sobra. Teria sido ótimo, mas, em megawatts médio, quanto foi isso? Não sei se foi tão grande assim. Isso não aliviaria o Sudeste.

E o horário de ponta no Sul, como está?
Se você olhar no diagrama diário de carga, ele realmente tem uma ponta ao longo de um período, normalmente ao cair da noite, em função, principalmente, do consumidor residencial que começa a consumir muito mais do que fora do período de ponta. Ele, normalmente, usa eletrodomésticos, chuveiros, iluminação…

Qual é o horário dessa ponta?
Depende da época do ano, depende da região, depende da temperatura. Normalmente, entre seis e dez horas da noite é quando ocorre a ponta.

O horário de verão funciona mesmo para reduzir o consumo?
O horário de verão causa uma não simultaneamente de alguns consumos que, normalmente, estariam simultâneos, como exemplo, escureceu e as pessoas chegam em casa. No horário de verão, normalmente, escurece depois de as pessoas chegarem em casa. Então, essa ponta se desloca para um pouquinho mais tarde e um pouquinho menor. A ponta reduz mais do que o consumo global de energia. Não sei quanto exatamente porque isso varia ano a ano, etc. Normalmente, a ponta reduz na faixa de 5% e o consumo global na faixa de 2%, mais ou menos…

Seria interessante criar um sistema de tarifa diferenciada, como preço maior em horários de maior carga, para economizar mais?
Isso já existe para grandes consumidores. No residencial, eu acho um pouco difícil. Há quase vinte anos, eu ouvi falar de experiências nesse sentido funcionando na Europa. Mas o primeiro passo é ter, pelo menos, medidores. Medidores digitais para tarifa diferenciada… prá poder dizer quando consumiu porque, como consumidor residencial, tem o relógio que vai mede a quantidade de quilowatts hora que consumiu, mas não diz quando consumiu. Então, prá dizer se foi fora ou dentro da ponta, é preciso de um novo medidor. Esses medidores são caros. Normalmente, as empresas distribuidoras, além de ter que investir num medidor que é caro, elas achavam que aquilo seria, na verdade, uma quebra de receita por uma redução de consumo por parte do consumidor que saberia consumir mais racionalmente, etc… Então, isso nunca foi implantado. Eu acho importante, mas não sei se é muito factível. Até agora não se mostrou factível, no Brasil, fazer isso.

Como está a confiabilidade do sistema aqui no Sul em termos de interrupção do fornecimento, etc?
Está dentro dos padrões desejáveis. (…) Claro que a distribuição de carga é totalmente diferente em Joinville, Camboriú, Florianópolis no período de verão do que Curitibanos no inverno, digamos. Agora, a taxa de atendimento em Santa Catarina é muito boa, como no Sul como um todo.

Como o ONS vai gerir a entrada no sistema do excedente de auto-produtores que, além de gerar energia para seu próprio consumo, podem produzir sobra de energia?
Se for um auto-produtor conectado na rede básica, ou seja, acima de 230 KV, ali ele diz respeito ao ONS. Se ele estiver numa tensão mais baixa, em princípio o ONS não tem que se envolver nessa questão. Se ele for se conectar na rede básica, ou seja, em ativos que tem tensão igual ou acima de 230 KV, ele tem que firmar um contrato de conexão, um contrato de uso do sistema de transmissão porque ele vai estar conectado a esse sistema e usando esse sistema. O ONS passa a ter a ver, digamos assim, com o que ele vai ter de produção. Ele vai ter que informar ao Operador: "hoje eu vou gerar tanto, amanhã vou gerar tanto". Tem um processo de inserção, de internalização desse cara na rede básica. Se for uma tensão abaixo de 230 KV, ele vai ter que negociar essa interação com a distribuidora local ou de quem for de direito a linha.

O estabelecimento do mercado de ações de energia pode originar algum problema para o Operador?
A princípio, as questões comerciais deveriam ser independentes das questões de operação. Então, não acredito que o pleno funcionamento do mercado de alguma forma impacte a questão operativa. Pode ser ter uma multiplicidade maior de agentes conectados, mas acredito que isso vai ter um ritmo de implantação que a própria entropia natural do modelo vai absorver.


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